quinta-feira, 1 de outubro de 2009

SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

JUIZADOS ESPECIAIS

Suspensão condicional do processo:
natureza jurídica; iniciativa da proposta

Weber Martins Batista

RESUMO

Discute a natureza jurídica da suspensão condicional do processo bem como a quem cabe a propositura da mesma, sob a questão: constitui a suspensão condicional do processo um direito do acusado ou uma faculdade atribuída apenas ao Ministério Público?
Compara o Direito Penal em vários pontos com o Direito Administrativo no tocante à matéria.

Cita os pressupostos/requisitos necessários para a concessão da medida de suspensão.
Traz, ainda, uma interpretação gramatical e lingüística dos termos usados pelo legislador ao elaborar a lei referente ao assunto – Lei n. 9.099/95.
E, afinal, tem-se a resposta à questão acima: tanto o Ministério Público, como a requerimento do acusado, ou ainda, por iniciativa do próprio juiz, pode-se obter a suspensão condicional do processo.





1 Um dos temas mais fascinantes da suspensão condicional do processo diz respeito à natureza jurídica do instituto, pois é com base nela que se pode estabelecer a quem cabe a iniciativa de formulá-la. Lucas Pimentel de Oliveira1, Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly2 foram os primeiros a posicionar-se contra, como diz aquele, o infeliz entendimento que se aflora, pois a suspensão condicional do processo não é um direito subjetivo do acusado, constituindo verdadeiro mecanismo jurisdicional ínsito na discricionariedade regrada do acusador público, emanada do ordenamento jurídico...

A discricionariedade regrada, reitere-se, confere ao acusador público, e só a ele, a análise da conveniência de se propor ou não a suspensão, de acordo com a política criminal exigida pela realidade de cada comarca.
No mesmo sentido, afirmam os outros dois ilustres autores2 que o Ministério Público possui faculdade absoluta de formular ou não a proposta de suspensão do processo. O legislador, por razões de política criminal, defere-lhe o exame da conveniência do prosseguimento da persecução penal. Esse entendimento é defendido, com argumentos semelhantes, por alguns outros autores.


2 Em sentido contrário, entendendo que a suspensão condicional do processo constitui um direito público subjetivo do acusado, parte considerável da doutrina defende a idéia de que, presentes as condições estabelecidas na lei, o juiz pode, por iniciativa própria ou a pedido do acusado, suspender o processo. Sob o título Direito Penal Público subjetivo de liberdade, Damásio de Jesus3 afirma que preenchidas as condições legais, a suspensão provisória do processo é um direito do acusado, não configurando sua proposição uma faculdade do Ministério Público.
Assim, também, a posição de inúmeros autores, como Paulo Lúcio Nogueira4 e Antônio Carlos de Campos Machado Júnior5. Os tribunais, também em maioria, têm decidido nesse sentido.


3 A suspensão condicional do processo constitui um direito do acusado, ou, ao contrário, não passa de mera faculdade atribuída ao Ministério Público? Problema semelhante tem dividido a doutrina, quando se discute sobre a concessão de liberdade provisória, de que tratam os artigos 310 e seu parágrafo único, e 350 do Código de Processo Penal, havendo quem, ainda hoje, entenda que nas hipóteses mencionadas não há que falar em direito do réu, mas em simples faculdade do juiz. Acontece6 que o poder discricionário, conforme a lição dos mestres de Direito Administrativo, em cujo campo o instituto ocupa posição de especial relevo, caracteriza-se pela liberdade que tem o agente, em presença de determinada situação de fato, de optar por uma das várias soluções postas à sua disposição, ou, se se quiser, à sua discrição.


Os problemas que a Administração Pública enfrenta são hoje cada vez mais complexos. Por isso mesmo, em muitos casos, na impossibilidade de determinar a forma e conteúdo dos atos que o administrador deve praticar, a lei estabelece limites mais ou menos amplos, em cujos lindes esse pode atuar. Não há, nessas hipóteses, soluções predeterminadas. Os agentes administrativos prendem-se, tão-somente, à moralidade dos fins. Devem preocupar-se apenas com a realização do interesse público e, sendo assim, são juízes absolutos da oportunidade e da conveniência de tais atos.
A característica dos atos discricionários reside, como conclui Cretella Júnior7, no poder que tem o agente de escolher, entre várias atitudes ou soluções permitidas pela norma, a que lhe parecer mais conveniente. O agente, enfim, pode escolher um caminho, dentre os vários apontados pelo legislador.


Diferente é a hipótese quando a liberdade do aplicador limita-se à afirmação da existência ou inexistência da situação de fato, não às conseqüências jurídicas dela decorrentes. Há, como leciona Barbosa Moreira, uma diferença fundamental, bastante fácil de perceber, se se tiver presente a distinção entre os dois elementos essenciais da estrutura da norma, a saber, o fato (tatbestand, fattispecie) e o efeito jurídico atribuído à sua concreta ocorrência. A discricionariedade situa-se toda no campo dos efeitos8. Liberdade no exame dos pressupostos do fato e liberdade na escolha dos efeitos são coisas absolutamente diferentes, e só essa última caracteriza o poder discricionário.


4 No caso da suspensão condicional do processo, estabelece a lei os pressupostos para a concessão da medida, que são: crime punido com pena mínima não maior de um ano; acusado não processado ou condenado por outro crime; presença dos demais requisitos do art. 77 do Código Penal, que permitiriam a suspensão condicional da pena (art. 89, caput, da Lei n. 9.099/95). Presentes esses requisitos – estabelece a lei – o processo poderá ser suspenso por dois a quatro anos, submetendo-se o acusado a período de prova. O fato de o legislador ter usado o verbo poder, em vez do verbo dever, não tem qualquer influência na solução do problema em análise.


Como está na lição de Carlos Maximiliano, a interpretação do Direito moderno deve ser feita tendo em consideração mais a regra que a palavra. Por isso mesmo, não se deve opor, sem maior exame, os termos pode e deve, e não pode e não deve. É que essas palavras, sobretudo as primeiras, nem sempre se entendem na acepção ordinária. Se, em vez do processo filológico de exegese, alguém recorre ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal e pode assume as proporções e o efeito de deve9.


Ao contrário do que ensinam os comentadores do estatuto processual penal – diz Frederico Marques, analisando o art. 350 daquele código, que trata de liberdade provisória –, não nos parece que, tão-só porque o texto use o verbo poder, fique entregue, discricionariamente, ao juiz a concessão ou indeferimento da liberdade vinculada. A razão – aponta o mestre, analisando o vocábulo em função do conjunto, dando mais importância à regra do que à palavra isolada – é que se a lei estabelece requisitos para a concessão da medida, desde que se encontrem esses atendidos, tem o réu direito à mesma: trata-se de direito público subjetivo, emanado do status libertatis do acusado, que é corolário do disposto – referia-se à Constituição de 1946 – no art. 144, c/c § 21, da Constituição Federal10.


Delmanto, analisando o problema, em face do sursis e do livramento condicional, afirma, igualmente, que hoje pode-se afirmar que a natureza obrigatória dos dois institutos já se pacificou, apesar das locuções verbais ("pode ser suspensa" e "pode conceder") que a lei usou. Ao juiz cabe verificar se as condições foram preenchidas, não podendo, em caso positivo, recusar a concessão11.
A conclusão a que se chega, portanto, é a de que, não importa a forma usada, mas desde que o legislador tenha estabelecido pressupostos para a concessão da medida, presentes esses, tem o acusado direito à mesma. O que não teria sentido seria, em hipóteses em tudo semelhantes, deixar ao bom ou mau humor do órgão do Ministério Público ou do juiz a faculdade de conceder tal direito.



5 Luiz Flávio Gomes admitia, na primeira edição de seu livro12, que considerando a natureza de direito público subjetivo do instituto, desde que presentes os requisitos legais, pode o acusado, ante a recusa do Ministério Público, formular o pedido de suspensão e nesse caso o juiz estará obrigado a emitir um provimento jurisdicional(...) Nenhum direito público pode ficar fora da tutela judiciária (CF, art. 5º, inciso XXV).


Na segunda edição, no entanto13, mudando seu ponto de vista, passou a afirmar que a iniciativa da oferta cabe, com exclusividade (meu, o grifo), ao Ministério Público, mas como está em jogo o ius libertatis, a recusa injusta ou ilegal do Ministério Público em fazer a proposta permite a utilização do habeas corpus. Com que finalidade? Com o fim de, reconhecido o direito à suspensão, obter do Judiciário um Writ com a determinação ao órgão acusador para que, no caso concreto, formule a proposta. Contudo, ao extrair suas conclusões finais sobre o tema, na Sétima Conclusão, depois de afirmar que o Writ of injunction apresenta-se como instrumento tecnicamente perfeito... porém não é prático, admite que a possibilidade de o acusado postular a suspensão configura a melhor e mais prática fórmula para a solução do problema (p. 175).


Ora, essas afirmações e conclusões, data venia, não apenas se contradizem umas às outras, como, o que é pior, atentam contra normas constitucionais. Se se trata, como afirma, de um direito público sujetivo do acusado, pois está em jogo o ius libertatis, como admitir que a proposta de suspensão caiba, com exclusividade, ao Ministério Público? E, sendo da competência exclusiva do Ministério Público, como imaginar que o tribunal possa determinar ao promotor a prática de um ato de sua exclusiva competência, de sua livre escolha? Nenhum juiz ou tribunal tem esse poder. Melhor admitir, como solução parcialmente válida, a que o ilustre autor denomina de melhor e mais prática, e que, na realidade, não é apenas a mais prática, mas a solução legal: a possibilidade de o próprio acusado requerer ao juiz a suspensão do processo14. E, se se trata de um direito público subjetivo, o que impede faça o próprio juiz, de ofício, a proposta?


6 Estabelece o art. 89, caput, da Lei n. 9.099/95 que (...) o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo por dois a quatro anos, desde que o acusado (...) No projeto do autor consta que, recebida a denúncia ou a queixa, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou do interessado, suspender o processo (...) A norma do art. 89 referido deve ser interpretada como dando ao Ministério Público, com exclusividade, a iniciativa da concessão da medida, ou é possível entender que, mesmo sem ou contra a manifestação de vontade do promotor ou, acrescente-se, do querelante, é possível a suspensão do processo. Essa última solução, como já se afirmou, parece a mais correta.


No sistema acusatório, a titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, a quem compete, com exclusividade, promover a ação penal pública (CF, art. 129, inciso I). Não há, em nosso sistema processual penal, a figura do juiz inquisidor, motivo por que – diz Frederico Marques – o impulso inicial do processo, quem o dá é o Ministério Público, quando se trata de ação penal pública, ou o particular, quando o caso é de ação penal privada15. Cabe, portanto, no primeiro caso, ao órgão do Ministério Público a propositura da ação. Se o promotor entender que a hipótese não comporta o oferecimento da denúncia, o máximo que o juiz pode fazer é, discordando dele, enviar o processo ao procurador-geral. Se este insistir no pedido de arquivamento, outra solução não cabe senão atender (CPP, art. 28).


O juiz, repita-se, não tem a iniciativa da ação. Depois de proposta esta, no entanto, as decisões a serem tomadas – recebê-la ou rejeitá-la, deferir ou indeferir provas, prender ou soltar o réu etc. – competem ao juiz, não ao Ministério Público. Uma das mais importantes decisões, agora, é a que permite a suspensão condicional do processo. Nada mais lógico do que concluir que o juiz, mesmo sem menção expressa da lei, mas com base nos princípios que regem sua atuação no processo, sobretudo em face de um direito constitucional do réu, possa ter a iniciativa de oferecer a este a suspensão do processo.


As partes delimitam o objeto da decisão final do juiz, a ser tomada na sentença, mas nos limites da ação proposta tem ele, antes da sentença, poderes decisórios, que exerce de ofício, como, dentre outros, o de decretar ou revogar a prisão preventiva; o de conceder fiança, cassá-la, julgá-la quebrada ou perdida; o de conceder habeas corpus, quando evidente o constrangimento ilegal etc. A oferta de suspensão do processo está entre as decisões que o juiz pode tomar de ofício.


7 Como o admitem os próprios partidários do entendimento contrário, a tese da concessão da suspensão do processo ex officio, pelo juiz, vem ganhando forte apoio jurisprudencial. Em acórdão recentíssimo, tomado por maioria, entendeu a Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que cabe ao juiz a iniciativa da suspensão do processo16. O colendo Supremo Tribunal Federal, também em acórdão muito recente, posicionou-se em sentido contrário, ao decidir, também por maioria, que a hipótese caracteriza, não um direito subjetivo do réu, mas um ato discricionário do Parquet. Sendo assim, e para evitar que essa discricionariedade seja transferida ao subjetivismo de cada promotor, se o juiz entender presentes os requisitos objetivos (meu, o grifo) para a suspensão do processo, deverá encaminhar o processo ao Procurador-Geral de Justiça, para que este se pronuncie sobre o oferecimento ou não da proposta17.


A decisão por último mencionada, data venia da alta autoridade de seus autores, merece reparo. Primeiro porque na hipótese da suspensão condicional do processo não basta examinar os requisitos objetivos. A Lei n. 9.099/95, como se pode ver em seu art. 89, estabelece, ao lado desses, pressupostos subjetivos, que também devem ser satisfeitos, sob pena de não ser possível a suspensão do processo. Depois porque, como já se afirmou, o referido art. 89 criou um tipo fechado, estabeleceu um fato, cuja existência deve gerar um só efeito: a suspensão do processo.


Não importa que o aplicador, para identificar o fato, tenha de valer-se de análise altamente subjetiva, o que acontece muitas vezes. O que importa é verificar se, afirmada a existência do fato, tem aquele um só caminho a tomar. Se isso acontecer, estamos em face de um poder vinculado do aplicador, de um direito público subjetivo do interessado. Liberdade no exame dos pressupostos do fato e liberdade na escolha dos efeitos são coisas absolutamente diferentes e só essa última caracteriza o poder discricionário.


8 O projeto do autor, dando ao juiz o poder de suspender o processo por iniciativa sua, ou a requerimento do Ministério Público ou do acusado, foi aprovado, por aclamação, pela Comissão de Reforma dos Procedimentos do Código de Processo Penal, de que fez parte o autor, ao lado dos melhores processualistas penais do país. E, por outro lado, a Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95, de que também participou, concluiu, analisando os arts. 79 e 89 da referida lei (Décima Terceira Conclusão), que se o Ministério Público não oferecer a proposta de (...) suspensão condicional do processo, nos termos dos arts. (...) 89, poderá o juiz fazê-lo.


É possível concluir, portanto, que na grande maioria das vezes os membros do Ministério Público, por seu excelente nível, ao verificarem a existência dos pressupostos objetivos e subjetivos que autorizam a medida, proporão a suspensão condicional do processo. Essa manifestação, no entanto, não é imprescindível à concessão da mesma, que poderá ser obtida a requerimento do acusado, ou por iniciativa do próprio juiz.


NOTAS

1 OLIVEIRA, Lucas Pimentel de. Juizados Especiais Criminais. São Paulo:Edipro, 1995. p. 76.
2 DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Juizados Especiais Criminais - comentários. Rio de Janeiro:Aide, 1996. p. 109.
3 JESUS, Damásio de. Lei dos Juizados Especiais Anotada. 3. ed. São Paulo:Saraiva, 1996. p. 107.
4 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo:Saraiva, 1996. p. 103.
5 MACHADO JÚNIOR, Carlos de Campos. Boletim IBCCrim. n. 44, p. 4.
6 BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória. 2 ed. Rio de Janeiro:Forense, 1985. p. 80. Sobre o tema, mais longamente, do autor.
7 CRETELLA JÚNIOR, José. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1979. p. 142.
8 MOREIRA, Barbosa. Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Revista Forense, v. 261, n. 895/897, p. 14-19, jan./mar. 1978.
9 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 8. ed. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 1965. 428 p. p. 282-283.
10 MARQUES, Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro:Forense, 1965. v. 4. p. 167-168.
11 DELMANTO. Direitos públicos subjetivos do réu no Código Penal. Revista dos Tribunais, v. 70, n. 554, p. 466-467, dez. 1981.
12 GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1995. 232 p. p. 169-170.
13 —. —. 2 ed, 1996. p. 192 e ss.
14 —. —. p. 175.
15 MARQUES, Frederico. Op. cit. 1961. v. 1 p. 64.
16 Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, decisão tomada no julgamento da Denúncia 07/96, contra o Prefeito de Santo Antônio de Pádua, em 12/11/96 (acórdão ainda não publicado).
17 Informativo do STF, n. 92, DORJ de 08/12/97. p. 4.
Weber Martins Batista é Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Professor Titular da UERJ aposentado, ex-membro da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal e da Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95.

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